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Morreu Marielle. Perdemos o quê?

Que triste meu 14 de março de 2018.

Dizer que o sensacionalismo e o oportunismo tomaram conta do momento é chover no molhado. Já estamos acostumados a esse tipo de comportamento deplorável e antiético. Eu não sabia quem era essa controversa vereadora, até mesmo por que não me dou ao frustrante trabalho de assistir noticiários já há um bom tempo. Mas, diante do escarcéu que virou a internet após sua morte, não tive como evitar buscar maiores informações e me vejo em condição de emitir minha opinião sobre o caso.
Lamentavelmente, entre pessoas do meu relacionamento, que inclusive afirmam compartilhar os mesmos ideais que me orientam, como por exemplo, o tripé liberdade-igualdade-fraternidade, que me parecem boa base para uma sociedade em busca de crescimento, pude encontrar, e não poucas, manifestações de um discurso de ódio, que em nada reflete os ideais supracitados.

Quanto ao caso do homicídio em si, qualquer afirmação que qualquer um fizer neste momento é precipitada, intempestiva, desnecessária e inútil. À Polícia cabe investigar, montar o inquérito e encaminhar suas conclusões à Justiça. Mas não é o que se tem observado.

Observemos o que as pessoas têm feito, o que têm falado e escrito nos dias que sucederam a morte da vereadora.

Muitos oportunistas, alguns possivelmente movidos por boa intenção (artigo que dizem, sobra no inferno), manifestaram sua indignação e diante dos holofotes famintos, ergueram suas bandeiras e gritaram suas palavras de ordem caducas, anacrônicas, ultrapassadas, ou sem sentido e sem proposta, como é claro o caso dos que gritam pelo fim da polícia militar sem apresentar uma solução para o problema que aquela instituição deveria combater. Houve até quem tenha conseguido contextualizar o caso com o evangelho e quase propor a beatificação da moça.

Muitos outros tantos de hipócritas se apressaram a gravar logo seu vídeo e compartilhar nas redes sociais, como o sujeito que a vida inteira explorou a pornografia e a inutilidade, sempre pagando de "badboy" e agora está ridiculamente tentando erguer uma imagem de bom moço, pegando carona na onda dos que elegem três partidos para chamar de esquerda e a eles e seus simpatizantes, atribuir toda sorte de predicados, os mais cabeludos que se possa imaginar.

Também vomitaram desesperadamente suas teses, antes mesmo do corpo da infeliz descer ao Adis, celebridades do mundo político, gente da Justiça, das polícias, gente comum, que adora aparecer mesmo... Todo mundo quer falar. Partidários de tudo que é ideologia abrem a boca e derramam o ácido.

Levantaram a ficha "suja" da mulher (agora, depois de morta e sem poder se defender, nem cobrar danos morais). Acharam fotos dela em todas as situações que algum moralista retardado adoraria pegar alguém, para tecer seu rosário de acusações. E eis que os teceram. Eis que há dezenas de vídeos, audios, apresentações em power-point, denúncias, fotos, tudo. 

Vinculam a falecida a todas as facções criminosas. Acusam-na de tudo de ruim que se possa pensar. Até o dia de sua morte, nenhum desses falastrões, hipócritas, moleques, irresponsáveis, vilipendiosos e inúteis havia falado nada. Covardes é o que são. 

Não a conhecia, nem consegui apurar muito de sua história, mas uma coisa é certa: Ela era um ser humano, cuja morte merece respeito, distanciamento, silêncio. Ela tem familiares que estão sendo desrespeitados junto com sua memória, por pessoas cujos interesses não passam do próprio umbigo, quando muito.

O que se tem ouvido, repito, é um discurso de ódio, o mesmo ódio que separa negros e brancos, ricos e pobres, direita e esquerda, cristãos e mouros. E isso deixa muito clara a intencionalidade dessas construções discursivas, carregadas de "certezas", de prejulgamentos, de intolerância e desumanidade.

Perdemos mais uma oportunidade de nos calar diante da inexorabilidade da morte, que tanto pode nos ensinar sobre a vida.

Totem e tabu: psicanalítico ou antropológico?


Totem e tabu

O texto abaixo é o resumo de uma aula ministrada no NEP (Núcleo de Estudos Psicanalíticos) em Rondonópolis-MT. Resolvi publicá-lo a fim de documentar o fato intrigante (discutido com a turma) de que houve discordância entre estudiosos do tema, em relação ao enfoque do texto. Enquanto um o entendeu como um texto de cunho antropológico, o outro conseguiu perceber o quão psicanalítica foi a intenção de Freud na obra. Compartilho o resumo e convido os interessados no assunto a pensar a respeito.

A quem Freud dirigiu a intenção dos quatro ensaios que compõem Totem e Tabu? Qual seu objetivo ao escrevê-los?
Segundo adverte o próprio autor no prefácio à primeira edição, embora “visem a despertar o interesse de um círculo amplo de leitores instruídos, na realidade, não podem ser compreendidos e apreciados exceto por aqueles que já não sejam alheios à natureza essencial da psicanálise”.
Ora, ele espera que suas reflexões possam aproximar dos psicanalistas, estudiosos de antropologia social, filologia e folclore. E mais, ele aponta a deficiência da falta de diálogo entre tais estudiosos, cujos olhares direcionados para os próprios conhecimentos dificultam a percepção de aspectos que ao outro podem parecer de fácil absorção.
Ou seja, tanto faltava aos antropólogos e filólogos, conhecimentos da “nova ciência” quanto aos psicanalistas, compreensão adequada de aspectos amplamente dominados por aqueles outros.
Uns, por não se abrirem ao novo, outros, por não se permitirem olhar para trás, assim como ainda acontece atualmente, atravancam o progresso da ciência em defesa de suas posições.
Ainda no prefácio à primeira edição Freud justifica a desproporcionalidade do enfoque dado aos dois temas na obra. E esclarece que o motivo se dá em razão do fato de que os tabus ainda são encontrados em nossa sociedade, ao passo que o totemismo já não pode ser observado na prática, nem mesmo seus vestígios palpáveis.
Já há mais de 100 anos, o que se tinha de sociedades nas quais se podia observar alguma influência de sistemas totêmicos, se restringia a alguns poucos grupos de povos australianos e africanos.

O horror ao incesto


O primeiro ensaio, intitulado “o horror ao incesto”, faz uma viagem antropológica por relatos de estudiosos da época, especialmente James George Frazer (1854-1941), de cujos textos extrai grande parte dos relatos apresentados, com a finalidade de demonstrar a existência de uma inexplicada evitação por parte desses grupos de povos, à mera possibilidade de exposição a situações que pudessem dar lugar a uma relação incestuosa.
Tais evitações eram reguladas através de diversos recursos criados sistematicamente, com a finalidade clara de inviabilizar as relações sexuais entre parentes próximos. Assim, evitava-se nesses grupos, pelo que observou Frazer e seus contemporâneos, permitir que um homem e uma mulher, não só os ligados por vínculos sanguíneos, mas também pelos vínculos totêmicos, permanecessem em situações nas quais pudessem dar vazão a seus eventuais desejos sexuais. Pai e filha, mãe e filho, irmão e irmã, genro e sogra e por aí adiante.
Mas, os fragmentos apresentados por Freud para ilustrar sua afirmação da existência de costumes não regidos por uma moralidade sexual parecida com a que conhecem os povos civilizados de então, não apresentam os motivos para o estabelecimento de tais costumes, de modo que permanece a dúvida sobre os motivos do estabelecimento desses sistemas.
Observa-se uma postura preconceituosa de Freud, quando afirma que “... esses selvagens são ainda mais sensíveis à questão do que nós. Estão provavelmente mais sujeitos à tentação de cometê-lo e, por essa razão, necessitam de maior proteção...“ (pag. 28). Convenhamos, falta cientificidade ao argumento. Por que motivo um grupo seria mais susceptível à tentação ao incesto que outro grupo? Por serem menos “civilizados”?
Somente nos últimos parágrafos do texto é que Freud faz alusão direta aos conceitos psicanalíticos e os relaciona ao texto até então construído. Sua afirmação mais forte é de que na neurose o indivíduo assume uma posição infantilizada, regredindo à tendência natural da infância, dominada por desejos incestuosos (pág. 35). Essa relação seria, pois, o complexo nuclear das neuroses, conforme propõe Freud também nos “Três ensaios sobre a sexualidade” (Vol. VII).


Tabu


De modo geral, os tabus são restrições impostas por regras morais dentro de uma sociedade, na tentativa de preservar o grupo de práticas consideradas prejudiciais a seus membros. Essas práticas, em sua maioria, estão ligadas a valores morais e religiosos.
Os tabus são interdições não só à prática de determinados atos, cujos resultados poderiam abalar as estruturas da sociedade, mas também à mera pronúncia de certas palavras ou nomes, o que poderia atrair má sorte ou a ira de divindades.
Os grandes tabus de todos os tempos, frequentemente estão relacionados à sexualidade, ou ao relacionamento dos homens com os deuses. Não raro, os dois aspectos podem ser observados concomitantemente.

Muito mais falamos e discutimos. Muito aprendemos e compreendemos. Mas fica a dúvida: Deve Totem e Tabu ser classificado como um texto psicanalítico ou antropológico?

Sem as mulheres de ontem, teremos um mundo amanhã?

08 de Março  -  dia internacional da mulher sem rosto

O que dizer em um momento no qual o feminino, assim como o masculino e outros conceitos fundamentais, que antes chegaram a ser percebidos como bem definidos, que já foram senso comum, nos nossos dias estão em decadência e sem substituto?

Nossos conceitos e valores estão desfigurados, a ponto de a mulher não conseguir mais reconhecer seu papel na sociedade.

Observamos atualmente, meninas, que se fossem expostas apenas à força da Natureza, via de regra tomariam rumo a uma sexualidade saudável, mas, por estarem sendo submetidas a um discurso que desvaloriza o natural e investe no poder da manipulação da imagem, do "parecer ter",  vivenciam uma experiência de desinvestimento libidinal. Elas precisam ser iguais aos meninos, para não serem taxadas de machistas, para não parecerem inferiores.

Elas não buscam SER, mas insistem em "parecer ter". Assim, se iludem e iludem  a quem desejam agradar. Investem em uma imagem que não permanece e não se sustenta, em relacionamentos superficiais, como se a vida fosse um único dia.

Isso reflete uma realidade que não é só da mulher de hoje, mas, da sociedade atual como um todo. O mundo está vivendo assim, os homens estão vivendo assim e as mulheres também estão vivendo assim.

Subjaz a esse comportamento o que a professora Camille Paglia nos apresenta como um feminismo que ilude as mulheres, empurrando-as a se posicionarem contra os homens, em disputa constante, ao ponto de se tornarem cada vez menos femininas, já que a luta por igualdade tomou proporções absurdas, fora de controle.
Isso é preocupante, pois nós sabemos que se não nos prepararmos para o futuro, certamente teremos problemas. 

Vale lembrar a fábula da formiga e a cigarra. Aquela que usou seu tempo focada em seu próprio prazer, sem se precaver e se preparar para o porvir, passará por sérios problemas quando a inevitável  e salutar alternância de condições da vida trouxer o inverno.

Leonardo Boff publicou um texto com o título "no princípio era o feminino". Ele traz informações que permitem afirmar que a origem da humanidade e da própria vida na Terra, se deu a partir de algo feminino. Isso lança por terra todo o discurso das civilizações que construíram nosso mundo, baseadas que foram e são, em sua expressiva maioria, em um modelo patriarcal de dominação, manipulação e controle.

Não vejo importância em definir se o feminino precedeu o masculino, nem em provar que todo o discurso civilizador sempre foi equivocado. Não vejo lucro em desmoralizar as teogonias e as teologias por suas incoerências. Já temos muitos desconstrutores de mitos.

Quero chamar a atenção de quem nos ouve, para o perigo de uma sociedade que foi forjada a partir daquela concepção de seres humanos que convivem, evoluem e se mantêm presentes no planeta, a partir da existência de seres sexuados, que se reproduzem e se preservam e que vem abandonando sistematicamente esses conceitos, deixando em seu lugar um vácuo conceitual que permite tudo.

Se abandonarmos (como parece que estamos abandonando) os antigos conceitos de família, comunidade, sociedade, pais, filhos, homem e mulher, em pouco tempo a espécie humana poderá entrar em extinção.

E a mulher sempre teve e terá papel fundamental na manutenção da vida. O feminino, como podemos observar em outras espécies, é que garante, não só a possibilidade da reprodução, mas é dotado exclusivamente, de capacidades inerentes à preservação de sua espécie. O masculino, pelo contrário, tende a destruir seus iguais, em busca da diminuição da concorrência. Mulheres não fazem guerras.

Pois a mulher, seja como representante simbólico da origem, como quer Boff, seja como símbolo do cuidado com a preservação, deve receber de nós todos, atenção especial, nesses tempos de mudança, em que tudo pode se perder por mera inobservância do óbvio.

Pois me atrevo a desafiar as mulheres às quais minhas palavras chegarem: 

Mulheres.... façam o que vieram ao mundo para fazer e o mundo será melhor. Sejam "apenas" mulheres. Isso já é o bastante para que a humanidade sobreviva a si mesma.