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Sexualidade masculina.


Texto apresentado no 1º Congresso de Psicanálise de Rondonópolis-MT.

Autor e apresentador: 
Weverton Duarte Araújo.

Sexualidade masculina.

Por carregar a consanguinidade mineira de Guimarães Rosa, Adélia Prado e Drummond de Andrade, talvez até como uma marca da nossa sexualidade, enquanto capacidade de relacionar com o outro e sua alteridade, dou-me, por meio do que de mim brota de forma quase incontrolável: a poesia.

Inexorável destino

“Queria gritar pra te abalar os tímpanos a esmo
Não pra te ferir, mas pra te fazer lembrado
Que tu não és o que acreditas ser, nem serás
Que tu não amas a ninguém, nem a ti mesmo
Porque é assim que foste    desenhado
E o que nem sabes por que buscas, jamais acharás.

Queria que ouvisses a voz que vem daí de dentro
Que te compele à fúria vã de lutar contra a morte
E conhecesses o que diz teu interior sem tempo
Sem passado ou presente, sem futuro, sem sorte...
Mas o que ele fala destrói teu eu, corrói teu chão
Te desafia na tua fraqueza, e ele é forte
E te aflige todo dia ao tocar-te a pulsão.

Tenho pena de ti homúnculo dentro de mim
Que não sabe bem se é meio fêmea ou todo macho
Nem o que é ser homem, ou como ser mulher,
Não conhece o começo, nem domina o fim
E do desejo sem cura é eterno capacho,
Servo mesmo, escravo, faz o que ele quer.”


É desse homem sem norte, sem chão, sem sorte, em tempo-cão, que estamos falando hoje?

É de um masculino que não se reconhece diante do espelho, que não se espelha no que conhece, por se sentir assim, um bicho sem forma, fluido como desenha Zigmunt Bauman em Modernidade líquida, ou Tempos líquidos?  De uma vítima do “império do efêmero” como apregoa Gilles Lipowetski?

Para falarmos de sexualidade masculina, não creio possível não falar de sexualidade feminina, de sexualidade humana, de relacionamentos entre humanos, de família, de casais, de grupos e de pessoas.
Meu tema de estudo no Mestrado em Psicanálise na Universidad Kennedy, em Buenos Aires, Arfentina, se prendeu aos efeitos dos discursos civilizantes sobre o sujeito. O sujeito que a cada dia mais se “assujeita” aos discursos que cumprem, não mais que o papel de manter de pé, um modelo social, uma forma de organização de um grupo, como todos sabemos, ao completo arrepio do indivíduo e de sua condição subjetiva.
Por isso, acho adequado propor que pensemos sobre esse fenômeno social que é a influência do discurso sobre o indivíduo membro de um grupo social. Aqui e agora, falaríamos e passaríamos a pensar com mais cautela sobre o que esses discursos causam sobre uma parcela desse grupo, ou seja, sobre os indivíduos portadores das características que se convencionou chamar de masculinas, ou que, por serem herdeiros de uma conformação física inegavelmente mais forte que a do sexo oposto, tornaram-se como que legatários de desempenhar funções sociais que acabaram por se tornar “coisa de homem”.
Os diversos discursos, na verdade, cada um sai em defesa de interesses específicos, invariavelmente discrepantes do que diga respeito ao interesse do sujeito em seu processo de subjetivação, embora se ocultem sob o manto da defesa dos interesses do indivíduo.
Os conceitos de Sujeito e indivíduo, precisam dessa forma, ser e são entendidos como necessariamente distantes e desvinculados um do outro, uma vez que expostos aos efeitos dos discursos civilizantes.

Foucault nos ensina que o discurso tem em uma sociedade a função de controlar, selecionar e organizar, pela via de processos de exclusão e interdição, as possibilidades de manifestação dos sujeitos enquanto seus membros, revelando assim o estado de permanente tensão entre os discursos dos indivíduos com o discurso da sociedade.

As instituições das quais a sociedade se utiliza para ratificar seu discurso, se encarregam de estabelecer os sistemas de chancela da voz do indivíduo, permitindo-lhe ou negando-lhe acesso ao direito de ter seu discurso acolhido, reconhecido como portador de valor.

Isso por sua vez, revela o vínculo do discurso com o desejo e com o poder. Foucault evoca ainda o discurso da Psicanálise para afirmar que “o discurso não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo, mas também é aquilo que é o objeto do desejo. O discurso não é somente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar”.

E para não nos esquecermos que estamos tratando de Psicanálise e sexualidade masculina, lembro que estamos falando exatamente disso, ou seja, de um discurso que o indivíduo masculino é cobrado a assumir como se fosse seu, colocando-se em constante luta contra os demais indivíduos, cada um incumbido de defender um discurso que lhe nomeie dentro do grupo social em que vive.

Elucubração sobre as causas da angústia do masculino.

Segundo Joel Birman, a revolução feminista, apoiada pela evolução da ciência, bem como, os efeitos das duas grandes guerras do século XX, marca o início do questionamento da dominação masculina e a consequente revolução sexual ainda em curso e que define o quadro de incerteza e insegurança no campo da sexualidade, não só dos homens, mas também das mulheres. Ele define essa revolução em três etapas: a revolução feminista, a revolução lésbica/gay e a revolução “trans” e afirma que cada uma dessas fases exerce certo nível de influência no meio, conforme suas características.

Pode-se inferir dessa fala de Birman, que os acima citados movimentos de mudança de posicionamento social de indivíduos (posicionamento até então determinado em função do seu sexo - ouçamos: diferença “anatomico-biologica” entre seres de uma mesma espécie), não ocorre em desafio ou ruptura com sua condição natural ou cultural, mas em desafio ao masculino como símbolo. Eles desejam não o reconhecimento de suas diferenças, mas uma condição de igualdade com os homens (do sexo masculino).

Ora, o problema (ou os problemas) da sexualidade masculina em nossos tempos pode se observar aí, nessa crise de conceitos, nesse desejo de mudança que, embora possa ter base em sentimentos válidos, ao não medir as consequências, desafia, fere e trabalha para desconstruir o conceito de masculino, pacificamente apanhado como algo a ser definido, uma vez que nos falta uma mera sombra de segurança sobre o que é mesmo, ou o que deveria ser, uma manifestação masculina da sexualidade humana.

Pior, tal desconstrução vem pela imposição de uma suposta igualdade de direitos que não leva em consideração as implicações naturais e as construções sociais até então baseadas nas diferenças. Os extremistas do “anti-machismo” se apoiam em uma negação da diferença fundamental entre homem e mulher, ou entre macho e fêmea, tratando-a como mero aspecto anatômico, ou fisiológico.

Essas mudanças estão se dando em um movimento pendular que parece tender a nos levar ao outro extremo, contraposto à hegemonia do masculino, que se manteve até o fim do século XIX.
E onde nos levará esse extremo oposto? Se outras ciências, pelas suas próprias funções e propostas, não se aventuram a especular sobre o futuro, a Psicanálise não pode se abster de fazê-lo, já que se propõe como ferramenta de intervenção na saúde  mental humana.

Elisabeth Roudinesco, em “a família em desordem”, faz uma longa exposição da evolução do conceito de família e dos papéis sociais de seus membros. Ali ela nos permite apoiar sobre seu discurso baseado na chancela de Levy Strauss para propor nosso questionamento sobre o lugar do masculino, algoz desde sempre e vítima para sempre.

Maria Rita Khel, em seu livro o Tempo e o Cão, fala desse lugar que atualmente ocupa o homem, não só o macho da espécie, mas também e talvez de forma muito aguda, ele, o (homem-macho-viril-correto-ético-responsável...super-homem.... impossível), esse que não tem como se sustentar nesse lugar e foge pela via de uma série de sintomas que podemos chamar de “depressivos” .

Esse é atualmente o lugar do masculino: lugar do deprimido, que foge da subjetivação de tal forma, que não há como passar despercebido. Tudo por conta da crise de conceitos que movimenta o homem em direção inevitável aos conflitos existenciais hodiernos: nós, os homens da atualidade, somos confrontados pelo discurso de uma sociedade em transformação, cujos conceitos estão entre o que foi e o que parece que será. O problema é que o vácuo causado por essa transição, que embora seja acelerada, tem um tempo de assimilação lento e diferenciado, não permite vácuo no tempo de resposta.

Paulo Ceccarelli, em um texto chamado “Reflexões sobe a sexualidade masculina” publicado em 2013 na Revista Reverso, publicação periódica do CPMG, aponta para a quase inexistência de escritos, ou pesquisas sobre o tema, enquanto que sobre sexualidade feminina há grande produção e  inclusive a maioria de autoria de homens.
Intrigante é perceber que no decorrer do referido texto, o autor fala mais da sexualidade feminina do que da masculina propriamente.

Isso nos permite supor que, conforme ele mesmo diz, a fragilidade da condição da masculinidade é tamanha, que os homens evitam falar dela e se ocupam da sexualidade feminina como defesa, mantendo o misterioso silêncio que protege enquanto oculta, como se o não se aprofundar em questionar a sexualidade masculina lhe garantisse a manutenção da posição dominante que sempre ocupou.
Ou seja, como se fosse possível (e já podemos ver que não é) a sustentação da imposição de um modelo pronto e inquestionável como o foi o modelo androcêntrico que delimitou o pensamento humano por séculos. 

Camille Paglia, numa entrevista publicada pela Folha de São Paulo em  24/04/2015, apresenta a revolução feminista em três fases e se identifica com a primeira, quando as mulheres lutaram pelo direito de “existir socialmente”, quer dizer, ter direito ao exercício de uma subjetividade, o que até então lhes era negado, já que não podiam nem mesmo se manifestar politicamente através do voto.

Mas a pensadora norte-americana acusa o último movimento feminista (no qual ela inclui o movimento trans) de estar não mais buscando a liberdade de expressão para as mulheres, mas a submissão do homem a uma igualdade que o descaracteriza. Paglia propõe que a mulher deveria retroceder ao ponto de se identificar com a maternidade, o que implicaria em deixar de lutar contra o homem e se tornar companheira, parceira dele, respeitando as diferenças e não promovendo uma igualdade que subverte uma lógica biologicamente inquestionável.

Gilles Lipowetsky em “A terceira mulher” e vários outros escritos, é mais uma voz a trazer a incontestável verdade de que o homem permanece em sua tentativa de manter sua imutabilidade, enquanto a mulher, especialmente nos últimos cinquenta anos, experimentou uma mudança em sua condição subjetiva como nunca se observara antes.

Conclusão

Em resumo, o que se pode apreender dessas breves considerações? 
Arrisco dizer que todos os pensadores que procurei trazer à discussão, não só Psicanalistas, como também Filósofos e Linguistas, nos poderão apoiar se nos atrevermos a propor que a sexualidade masculina está, por mais paradoxal que essa afirmação possa parecer, submissa ao que ditar a sexualidade feminina, ou ao que ditarem os discursos a ela subjacentes.

Ou seja, (parodiando Lacan), “uma sexualidade masculina não existe” em nosso imaginário. O que existe sim, ou o que resta como opção ao sujeito masculino é um “semblant” de uma sexualidade, que reflete a necessidade de se fazer, se criar, se reinventar a cada momento, de modo que possa se colocar, ainda que simbolicamente, em condição de atender ao outro grande enigma da sexualidade humana, este proposto por Freud: o que quer a mulher?

Em outras palavras, sejam quais forem os motivos (a revolução industrial, as duas grandes guerras, a queda da função paterna provocada pelo deslocamento da posição das mulheres na família e na sociedade, etc.), o que ocorre e não pode ser desprezado, é que houve mudanças. Em decorrência delas, uma parte da sociedade, seja por não percebê-las, ou por não acreditar que elas fossem se manter, não acompanhou o ritmo e se perdeu.

E assim se encontra, como propõe María Ester Jozami em “De exílios y destinos”, exilado e sem destino, já que desprovido do que Lacan chamou de “fantasma fundamental”.
Exilado da condição que ocupava de certa forma confortavelmente e sem destino, pois nenhum lugar lhe é dado pelo discurso dominante.

Daí a crise existencial do masculino, bem como de todos os axiomas da civilização, que o mundo masculino criou no desenrolar das eras passadas. Diante de um mundo em patente revolução; da falta de conceitos que antes serviam de suporte ao discurso; da velocidade vertiginosa que as informações circulam atualmente, não deixando espaço para o amadurecimento de um conceito.