Grupos de indivíduos
Weverton Duarte Araújo
Por que nos agrupamos, formamos famílias, turmas,
clubes, sociedades? De Freud podemos auferir a ideia de que somos todos vítimas
do narcisismo, que em princípio nos leva a odiar o outro, posto que esse outro é marcantemente diferente
de nós e está lá, a nos apontar sempre essa diferença como ameaça ao que julgamos mais
belo, mais perfeito, ou seja, nós mesmos.
A motivação para nos unirmos a outros humanos, de
modo a permitir o surgimento de um grupo, é tratada no Cap. VI do escrito
“Psicologia de Grupo e a análise do Ego”, onde Freud evoca Schopenhauer e sua
célebre história dos porcos-espinhos, que por necessidade de calor se aproximam
uns dos outros a ponto de se ferirem mutuamente, mas se afastam e se aproximam
novamente até encontrarem o ponto de equilíbrio, onde se aquecem mutuamente sem
se ferirem.
Daí a noção de que também nós, humanos, só refreamos
o nosso narcisismo em função de uma necessidade tão importante quanto a que ele
protege, ou seja, a preservação da vida. A única barreira do amor por si mesmo
seria pois, o amor pelo outro, ou amor objetal.
Há que se pensar seriamente então, a respeito do
conceito de amor, já que a relação de sujeito e objeto frequentemente associada
a ele, pode não ser exatamente adequada ao que habita o ideário popular como
conceito de amor. Nos agrupamos por afinidade, por apego (amor) ao que o outro
pode nos oferecer para suprir nossos desejos e necessidades. Assim, como os
porcos-espinhos, tanto damos quanto recebemos ao fazermos parte de um grupo,
onde aprendemos a suportar os espinhos pontiagudos do narcisismo de nossos
semelhantes para não morrermos do frio da solidão.
O casamento e o consequente agrupamento familiar, com
suas inúmeras formatações observadas atualmente, talvez seja a forma mais comum
e frequente de as pessoas se agruparem. É fácil entender os motivos dessa
tendência, que se pode justificar primeiramente pela necessidade de preservação
da espécie, não obstante esse aspecto pareça ter perdido a primazia em favor de
outros, de cunho social e econômico, uma vez que a família, como "célula mater" da sociedade, agindo como
multiplicadora de ideologias
políticas e religiosas, possibilita assim a perpetuação, não apenas de
pessoas, mas de Estados e dinastias.
Quanto às outras modalidades de agrupamentos de pessoas,
é certo que cada uma visa a atender também uma necessidade humana. Assim sendo,
poderíamos dizer que os grupos são uma maneira de realização coletiva dos
desejos individuais. Mais que isso, também a realização em cada indivíduo, dos
desejos e expectativas de uma coletividade.
Engels (2006) propõe um processo evolutivo na
organização dos grupos familiares, situando-os em três estágios: estado
selvagem, barbárie e civilização, nos quais predominavam, respectivamente, os
casamentos por grupos, a família pré-monogâmica e a monogamia.
E acerca da monogamia como suposto resultado de
evolução onde o amor sexual individual sobrepujasse a conveniência dos outros
modelos de agrupamentos de pessoas, Engels discorda, destacando o fato de que
essa teria sido “a primeira forma de família que não se baseava em condições
naturais, mas em condições econômicas”. Para ele, a monogamia surgiu da
concentração de grandes riquezas nas mãos de homens (indivíduos do sexo
masculino), que desejaram passar essas riquezas como herança aos filhos, o que
não era possível nos modelos anteriores de agrupamentos familiares, organizados
que eram em torno das mulheres, a partir das quais se orientavam as regras da
hereditariedade.
Um aspecto que chama a atenção daquele que se ocupa
em observar um grupo, certamente é o caráter provisório do estado mental de
seus membros, que retornam a um estado diferente assim que deixam de estar
compondo um grupo, mas, agindo como indivíduos isolados. Os indivíduos se
perdem nos grupos, como se a fusão das diversas personalidades causasse um
efeito hipnótico, capaz de trazer a tona as características comuns a todos os
membros do grupo, que por isso mesmo não assustaria os demais.
Os caracteres individuais se desvanecem e dão lugar
ao que há de mais naturalmente humano e menos civilizado em cada um. A união
dessas manifestações caracteriza a força do grupo, a capacidade de execução de
ações que ao indivíduo isoladamente seria impensável, consideradas as
limitações impostas pela ação do superego ou do próprio ego, racionais e
carentes que são da aceitação do outro.
Por meio da supressão da repressão imposta pela
civilização, já que no grupo o anonimato protege o indivíduo, todos agem e
ninguém é responsabilizado individualmente. É possível que boa parte dos indivíduos
de um grupo, se questionados acerca da responsabilidade individual pelas ações
coletivas de seu grupo, não se sinta individualmente responsável.
De alguma forma, o EU civilizado desaparece, uma vez
que o OUTRO que delimita o alcance e a intensidade de suas ações também
desapareceu, tornando-se um anônimo como ele mesmo. Daí podermos afirmar que o
grupo remete o indivíduo a sua condição anterior à civilização, quando havia a
supremacia da pulsão em detrimento do efeito civilizatório da repressão.
No capítulo IV de “Psicologia de grupo e análise do
ego” de Freud, aprendemos que a influência do grupo sobre o indivíduo pode
alterar profundamente sua atividade mental, reduzindo-lhe a capacidade
intelectual ao nível médio dos componentes do grupo, para que possa haver um
certo grau de homogeneidade nas ações e no discurso de seus membros.
O
“normal” e o patológico
O indivíduo se relaciona com o grupo de tal forma,
que podemos supor a ocorrência de uma identificação imaginária, ou seja, uma
situação tal, em que o indivíduo se vê representado pelo grupo enquanto está
nele, como se o grupo fosse capaz de fazer emergir e dar evidência a uma imagem
que o indivíduo tem de si mesmo e não consegue manifestar enquanto indivíduo isolado.
Trata-se de uma identificação especular narcísica que
a civilização eficazmente inibe pela ação da repressão social, vencida pela
força da sensação de anonimato do grupo, que permite um certo grau de
transgressão.
Podemos assim, afirmar que o pertencimento a um grupo
possibilita ao indivíduo alguma espécie de emancipação, já que uma dose de
narcisismo não seja exatamente abominável, mas, pelo contrário, até mesmo
necessária.
Essa identificação é também de certa forma uma
identificação histérica, uma vez que o indivíduo assimila determinados traços
do grupo, que não são traços seus, necessariamente. Uma identificação ao desejo
do outro, cuja satisfação é alcançada por intermédio da manifestação de traços
que o indivíduo toma por empréstimo ao grupo, mas os confunde como seus, manifestando
um estado patológico. Por mais que seja legítimo o empréstimo desses traços, já
que o indivíduo pertence ao grupo, o equívoco se encontra na confusão entre o
que é do grupo e o que é do indivíduo.
O aspecto negativo mais evidente da influência da
mente grupal nas ações do indivíduo pode ser observado nos abusos cometidos
pelos grupos de manifestantes, “black blocs” e outros do mesmo gênero, que
surgiram recentemente, em meio às manifestações que se multiplicaram pelo
Brasil, a partir de meados de junho de 2013 e culminaram em fevereiro de 2014,
com a morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido na cabeça por um
artefato explosivo lançado por um anônimo que, muito provavelmente não o faria
se tivesse o rosto descoberto e não estivesse influenciado pelo desejo, pelas
emoções e pelo efeito da sugestão a que podem se submeter os membros de um
grupo.
Pessoas que, estivessem sozinhas, dificilmente
praticariam atos de violência e desrespeito às leis, agem de forma exatamente
oposta quando reunidas em grupos, abandonando o sentimento de responsabilidade
que sempre controla os indivíduos, como afirma Freud, ao citar Gustave Le Bon em
sua descrição da mente grupal.
Conclusão
O indivíduo se perde no grupo. O Eu
desaparece e o Inconsciente se expõe e se impõe. É como se todos fossem
perversos ou psicóticos, livres das limitações neuróticas, surtados pelo efeito
do agrupamento e do anonimato, quando então a lei do pai (a castração, a
repressão) é ignorada, rejeitada ou mesmo afrontada, dando espaço aos desejos
naturais do indivíduo mais contidos pelo efeito repressivo da civilização.
A mente grupal que invade os indivíduos
enquanto membros dos grupos é um vácuo na civilização, uma possibilidade de
“não eu”, de transcendência, de negação da ascese imposta pela civilização.
Não tratamos aqui, como se viu, dos aspectos positivos e benéficos
da exposição do indivíduo à influência dos grupos, embora creiamos existam,
obviamente, e tanto podem trazer benefícios quanto malefícios ao indivíduo,
assim como à sociedade, uma vez que abalam as estruturas de um e de outro.