Alienação e separação
Considerações sobre a constituição do sujeito.
Weverton Duarte Araújo
O sujeito
Podemos nos perguntar sobre o que é mesmo o sujeito, diante de um mundo
que parece procurar a objetalização do indivíduo, às custas do próprio
ofuscamento de um sujeito agente, ativo, o qual só é bom enquanto se
conforma aos ditames do modismo e do efeito massificante da
globalização. Perguntaríamos se ainda existe um sujeito legítimo, como
aquele que conhecemos quando aprendemos em língua portuguesa; Um sujeito
que é o agente da oração, protagonista da ação; O sujeito que dá vida
ao verbo, que se faz vivente; Mais que apenas falante, sujeito atuante.
Na virada do século, a historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco1
já falava do efeito devastador da superação da era da subjetividade
pela era da individualidade, o que ela situa como ocorrido lá pelos
meados da penúltima década do Século XX. Esse fenômeno, segundo a
autora, transformou o homem moderno no “contrário de um sujeito”,
submetido que se coloca, a fazer parte de um grupo, de uma rede, de uma
comunidade, distanciando-se cada vez mais, da possibilidade de se
sustentar como indivíduo autônomo, capaz de se posicionar diante das
próprias demandas e também das demandas originadas pela necessidade da
convivência social.
Não
só os psicanalistas se importaram e se ocuparam em expor ao mundo essa
mudança. Charles Chaplin, com sua linguagem peculiar, demonstrou isso em
sua obra “Tempos modernos”, de 1936, onde o indivíduo é levado por
diversas correntes sociais, tornando-se parte de um sistema, agindo
sempre como coadjuvante do sistema, do qual precisa fazer parte,
dissolvendo-se nele.
O
sujeito dá lugar ao indivíduo mecanizado, seguidor dos desígnios do
modelo de sociedade em que vive. Sente-se sujeito quando manifesta a
urgência da observação dos direitos que essa mesma sociedade lhe obriga a
procurar, para assim, marcar sua diferença, num mundo de proclamada
igualdade.
É
óbvio até ao observador menos atento, que o homem de hoje busca se
colocar na posição de anti-sujeito, fugindo das mais variadas formas,
seja pela drogadição, seja pela religião, ou por outros inúmeros meios
de se manter alheio à possibilidade de ser sujeito de si mesmo, de sua
própria vida. Podemos perceber no discurso das redes sociais na
Internet, onde as pessoas lançam seus desabafos, fazem suas críticas,
mas não passam disso. Apenas repetem chavões, como se isso as tornassem
sujeitos de alguma forma. Mas, na verdade, se omitem de agir.
Aspectos constituintes
Quando
se daria então, o momento em que o sujeito pudesse ser detectado dentro
de seu corpo? Quando será, que começamos a praticar as ações que nos
colocam na condição de sujeito? Não temos, obviamente, uma resposta
conclusiva a estas questões. Teorias, temos sim, diversas. Passemos
pois, à exposição de algumas, a fim de que nosso questionamento possa
ter algum alento de resposta.
Winnicott2
sugere que o bebê “sente” ter tido participação ativa no momento do
parto. Além disso, as ações mais primitivas do bebê, como sugar o seio
materno e o próprio polegar, ou ainda, procurar por tais objetos,
extrapolariam a esfera do instintivo, posto que, levar e manter na boca
os diversos objetos, manifestaria o desejo de controlar a posse de tais
objetos. Assim, poderíamos arriscar afirmar que o sujeito winnicottiano é
contemporâneo ao nascimento do bebê, se não anterior a este, uma vez
que, a partir de sua premissa, torna-se possível afirmar que, há ação
por parte do feto que se posiciona e busca a saída daquele que lhe fôra o
lugar suficientemente bom. Além disso, outras manifestações observadas
durante a gestação, poderiam expressar mais que movimentos
involuntários.
Freud
e Lacan, cada um a seu tempo e contando com diferentes referenciais
teóricos, apontam a linguagem como principal constituinte do sujeito.
Defendem a existência de um “aparelho de linguagem”, que surge algum
tempo após o nascimento do ser humano, pelo contato com outros
“aparelhos de linguagem” e daí se desenvolve, tornando-se apto a cumprir
sua função de sujeito, que em suma, seria a de exercer a potencialidade
de se relacionar com o outro no registro da troca simbólica. Isso
equivaleria a ser sujeito, ou seja, ter a capacidade de se posicionar
frente ao outro e fazer-se ouvido, entendido e atendido por este em suas
demandas.
Lacan3
chega mesmo a afirmar que o sujeito está condenado a só se ver surgir
no campo do Outro, a partir da alienação, assim como, se vê obrigado a
“se por no mundo” pelo efeito da separação estimulada pelo
desconhecimento do desejo do outro, que faz surgir o desejo do sujeito,
ou o sujeito desejante.
Alienação e separação
Se
já temos inculcados os conceitos de alienação e separação, como, o
primeiro, um movimento em direção à ocupação do espaço reservado no
desejo do outro, para assim, se tornar sujeito e o segundo, um movimento
em sentido contrário, ou seja, em direção à afirmação de si mesmo em
relação ao outro, podemos arriscar um passo mais adiante, seja este,
buscar nas relações humanas da sociedade moderna, o estado em que se
encontram os movimentos de alienação e separação, não mais nos bebês que
começam a se relacionar com o mundo externo, mas, no indivíduo como
vivente de uma sociedade, relacionando-se com o outro e com o grande
Outro social.
Analisemos o postulado de Roudinesco:
“a
sociedade democrática moderna quer banir de seu horizonte a realidade do
infortúnio, da morte e da violência, ao mesmo tempo procurando integrar
num sistema único as diferenças e as resistências. Em nome da
globalização e do sucesso econômico, ela tende a abolir a ideia de
conflito social....”
Concordando
com ela, vemos a porta pela qual o indivíduo se entrega a um tipo de
alienação, que o transforma, guardadas as devidas proporções, como na
teoria do amadurecimento de Winnicott, em um bebê totalmente dependente
da mãe-ambiente, da qual não se separa por mera incapacidade de faze-lo.
Um tipo de autômato que nega a si mesmo, ao negar o outro, já que a
negação do conflito é a despotencialização do outro e de si mesmo, por
consequência.
Não
há aqui, espaço para a ideia de separação, ou seja, o indivíduo precisa
permanecer nesse estado de dependência da entidade social e de negação
da alteridade e da subjetividade, como se o outro fosse parte
indistinguível de si.
Como
alienação e separação deveriam ser partes subsequentes de um movimento
pendular e contínuo, achamos aqui, a falha gritante que a sociedade
ultra-moderna tem por desafio corrigir:
O
indivíduo precisa ter de volta sua condição de sujeito em seu mundo,
onde, talvez até por comodidade, já desempenha passivamente o papel de
objeto.
Alienação na Teologia
Paul Johannes Tillich nasceu na Alemanha, em 20 de agosto de 1886, tendo estudado filosofia em Tübingen e teologia em Halle.
Tillich
estabelece a conceituação e a distinção entre alienação e pecado,
partindo da definição hegeliana, que estabeleceu a doutrina da natureza
como mente alienada. Tal conceito é contestado em parte pelos seguidores
de Hegel, especialmente porque este entendia que o estado de alienação
do homem encontra reconciliação na história, do que discordaram muitos,
inclusive Kierkegaard, Karl Marx e o próprio Tillich, crendo sim, este,
que o homem se encontra ainda alienado de sua essência a partir da
existência. Ele afirma que somente através da fé e do amor como impulso
para reunir o que se encontra separado, é possível a reconciliação do
homem com Deus e sua consequente reunião, superando a alienação.4
Para
Tillich, alienação é a condição do afastamento da essência, enquanto
pecado é o ato pessoal do afastamento. Ele afirma que o estado de existência é estado de alienação. Essa
alienação do fundamento do próprio ser se daria na transição da
essência à existência, quando o homem se aliena do fundamento de seu ser
que é Deus, alienando-se por consequência, dos outros seres e de si
mesmo. Daí a culpa pessoal e a tragédia universal.
Tillich
expõe a situação do homem como alienado de sua essência, ao afirmar que
pelo fato de ser rebelde contra Deus o homem prova ser pertencente a
Ele, pois “onde
existe a possibilidade de ódio, lá, e somente lá, existe a
possibilidade do amor”. Desta forma, se o homem é capaz de demonstrar
rebeldia contra seu criador, isso se deve ao fato de que, ao existir,
esse homem assume, como no platonismo, uma forma deturpada da forma
original, existente no “mundo das ideias”5.
Assim,
podemos admitir que, para a Teologia tillichiana, o sujeito seria
resultado da ação consciente do homem em direção à existência, à qual se
aliena, deixando pois, de participar da essência divina da qual se
origina. A separação que a Teologia propõe, seria em relação à
existência humana como a temos, retornando o homem à origem divina,
negando a existência, numa sublimação completa da libido, pela prática
do amor incondicional ao seu semelhante, etc.
Conclusão
Se
para Freud e Lacan, o surgimento do sujeito se dá no desenvolvimento do
aparelho de linguagem, ou seja, o domínio de uma forma de comunicação
eficiente com o outro, mais que simplesmente a capacidade de percepção
do mundo exterior, para Winnicott, o sujeito já estaria presente na mera
ação de “vir a ser” do indivíduo (supondo-se que possa haver alguma intencionalidade ou ação do feto humano, no ato do nascimento).
Freud
fixa a linguagem como determinante da presença do sujeito, de modo que
também pela linguagem o indivíduo deve encontrar, pela via do método
analítico, sua posição adequada enquanto sujeito no mundo.
Ora,
para que haja um sujeito, seja pela ação, seja pela comunicação, há que
haver também um objeto, aquele que sofra o efeito da ação, ou que
funcione como receptor na comunicação. E se estamos em constante relação
com o outro e até somos o outro em dado momento das relações, é certo
que as posições de sujeito e objeto não são de forma alguma fixas, mas,
dependem do papel que o indivíduo represente naquele momento.
O
conceito teológico de alienação foi trazido apenas como um contraponto,
uma lembrança de que há outros entendimentos, até mesmo, infinitamente
mais populares que os conceitos psicanalíticos, não obstante, sejam
palpáveis os efeitos da aplicação de um e de outro, o que não nos cabe
discutir no momento.
Enfim,
retornando à inquietação que nos apresenta a sociedade atual, no que
diz respeito à postura de cada indivíduo em relação ao outro, torna-se
fácil perceber a imensa dificuldade que nos caberia enfrentar, uma vez
que se faria necessária uma inversão da ordem social. Talvez
precisássemos, como disse recentemente o Papa Francisco, assumir nossa
responsabilidade individual, como membros da sociedade, transformando-a
para melhor, pela ação.
Que
o futuro nos aponte o portador da razão, ou nos desaponte por termos
ido ou deixado de ir além dos umbrais do misticismo e da fantasia, da
fala e da ação.
Notas:
1 2000, p. 16
2 Apud DIAS, 2003, p.107.
5 Referência
à Teoria das Ideias, encontrada na obra de Platão, mais
especificamente, no diálogo Fédon. Platão parte do pressuposto de que
existem dois mundos. O primeiro sendo constituído por ideias eternas,
dotadas de uma existência perfeita, diferente das coisas concretas. O
segundo, das coisas sensíveis, é constituído por cópias das ideias. Cf. PLATÃO, 2003.
Referências Bibliográficas
CAMPANÁRIO, Isabela Santoro. Espelho, espelho meu. A psicanálise e o tratamento precoce do autismo. Salvador: Ágalma, 2008.
DIAS, Elsa Oliveira. A teoria o amadurecimento de D.W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago, 2003.
FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à metapsicologia freudiana.Vol.1. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Sales. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
LACAN, Jacques. O Seminário Livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
PLATÃO. Fédon. São Paulo: Martin Claret, 2003.
TILLICH, Paul.Teologia Sistemática. São Paulo: Paulinas; São Leopoldo: Sinodal, 1987.