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De Calvino aos nossos dias.

Uma reflexão sobre a evolução do pensamento calvinista sobre o dogma da justificação.

O homem é abençoado maravilhosamente por Deus com a capacidade de renovar diariamente a sua mente, de modo que, a cada dia, pode ter uma nova impressão sobre algo, além do que tinha no dia anterior. O lado negativo dessa capacidade está no fato de que, costumamos nos apegar ao brilho do novo, em detrimento do saber acumulado em todo o passado.
Não pretendo aqui de forma alguma, defender uma idéia retrógrada de que se devesse manter costumes milenares, ou que não fosse útil a reflexão. Não me arrisco ainda, a assumir uma postura liberal e progressista, sem balizas, mas, tão somente reunir alguns poucos dados históricos que possibilitem uma análise da evolução de uma única nuance de um pensamento que, renovado, remoldado, transformado e adaptado, pode não ter hoje, muito mais conteúdo original, que o próprio conceito, se o tiver.

A Justificação pela fé

O significado da Justificação, segundo David Schaff, foi um dos dois pontos determinantes da divisão na Igreja Ocidental no século XVI.
Contrariando a idéia apregoada e bem aceita na época pela Igreja romana, da ponte eclesiástica pela qual se alcançava a Cristo, e consequentemente à salvação, os reformadores conclamaram os cristãos a darem ouvidos à voz de Paulo, onde poderiam aprender que por meio da fé unicamente, se poderia alcançar a Cristo e sua salvação. É aí que começa nossa caminhada.
Consideradas as centenas de anos que nos separam de Lutero e Calvino, além da imensa distância cultural, entre muitos outros fatores a distinguir os dois momentos, o que nos resta daquelas idéias? Podemos nos chamar reformados sem colocar em risco os paradigmas da Reforma? O que diriam os reformadores sobre a igreja reformada de hoje?

Calvino

Calvino teve em sua época, a despeito de algumas opiniões em contrário, tanto lá quanto cá, uma importância fundamental na formação de um pensamento que perdura até os dias atuais, embora haja uma enorme discrepância entre o que encontramos em seus escritos e a prática eclesiástica que conhecemos.
Uma tradução para a língua portuguesa, da obra La pensée de la Réforme, de Henri Strohl, publicada em 1963 pela ASTE, com o título O pensamento da Reforma, insere Calvino na segunda geração dos reformadores, trazendo um novo impulso à Reforma, que já perdera parte do seu vigor original.
Essa obra exalta Calvino à condição de o maior exegeta de seu século, caracterizado por sua forma clara e pelo esforço em harmonizar todos os textos bíblicos. Segundo os responsáveis pela obra, "conforme se baseie num ou noutro de seus escritos, pode-se apresentar Calvino como um asceta ou como partidário da alegria de viver”. Mas ele mesmo definiu com o termo sobriedade, o equilíbrio entre as duas atitudes.

Calvino e a justificação

Em sua clássica obra Instituição da Religião Cristã, popularizada como "As Institutas", Calvino expõe seu entendimento sobre a justificação em "Deste modo nós afirmamos em resumo, que nossa justificação é a aceitação com que Deus nos recebe em sua graça e nos tem por justos. E dizemos que consiste na remissão dos pecados e na imputação da justiça de Cristo" e em "Pois não há texto que melhor prove o que venho afirmando, que aquele em que Paulo ensina que a suma do Evangelho é que sejamos reconciliados com Deus, porque Ele quer nos receber em sua graça por Cristo". Calvino se embasa nos textos de 2Co. 5:19-21 e Rm. 5:19 para afirmar que a ação de obediência de Cristo foi suficiente para a justificação dos que nele crerem.

A Confissão de fé de Westminster

A Confissão de fé de Westminster é um tratado elaborado após longos debates e que reuniu os expoentes da teologia reformada, com a finalidade de firmar os princípios da igreja, em um período de grande turbulência entre ingleses e escoceses principalmente. Sofreu grande influência dos presbiterianos da época, e é tida atualmente como base doutrinária em outras denominações, mas, principalmente, nas Igrejas Presbiterianas.
No capítulo XI, que trata da Justificação, é afirmado que
“Os que Deus chama eficazmente, também livremente justifica. Esta justificação não consiste em Deus infundir neles a justiça, mas em perdoar os seus pecados e em considerar e aceitar as suas pessoas como justas. Deus não os justifica em razão de qualquer coisa neles operada ou por eles feita, mas somente em consideração da obra de Cristo; não lhes imputando como justiça a própria fé, o ato de crer, ou qualquer outro ato de obediência evangélica, mas imputando-lhes a obediência e a satisfação de Cristo, quando eles o recebem e se firmam nele pela fé, fé esta que possuem não como oriunda de si mesmos, mas como dom de Deus”.

Conclusão

Aqui é repetido o que já havia sido dito por Calvino, e ainda reforçado com um tom peculiar, quando se ressalta o fato de que na justificação, Deus não considera a própria fé como justiça, mas, a ação de Cristo em que a fé se apóia. Isso parece ser uma sistematização do pensamento de Calvino, acrescido desse importante detalhe: Calvino se ateve em frisar que só pela fé se é justificado, enquanto na confissão de fé de Westminster, pode-se claramente observar a noção de que a fé é mero meio para se obter o acesso à justificação, cuja causa efetiva se encontra no ato de Cristo em “morrer a morte do pecador”.
O grande risco de se interpretar a fé como a fonte da justificação, é sem dúvida, a clara inversão de valores que desvaloriza a misericórdia de Deus na ação de Jesus e transfere o mérito a um simples assentimento humano. Há que se ter muito cuidado com isso, ou nosso discurso cai em grave contradição.