Não
causa espanto defender a ideia de que o homem é um ser de linguagem.
Essa característica de ser falante, capaz de estruturar sistemas
linguísticos é pacificamente entendida como essencialmente humana,
já defendia Aristóteles há séculos.
Acontece
que essa mesma linguagem, tão utilmente empregada para a comunicação
e o desenvolvimento da humanidade, também exerce a função de meio
pelo qual os homens se manipulam, se escravizam, se exploram e se
abusam. A linguagem conduz a força motriz que rege, que organiza as
relações de poder entre os homens.
Uns
dominam pela via política, outros pela violência física, pela
hierarquização das relações sociais, comerciais, de trabalho.
Enfim, sempre que há relação entre seres humanos, pode-se esperar
algum tipo de dominação, manipulação e abuso.
Os
discursos organizados, como o político, o midiático, o teológico,
entre outros, poderiam ser percebidos como alienantes, inibidores da
função primordial do sujeito, qual seja, a de protagonizar sua
própria condição de indivíduo, mesmo que inserido em um processo
civilizatório e massificante?
No
caso específico da manipulação e do abuso espiritual (exigência
do uso da fé e do exercício equivocado da espiritualidade para a
concretização de circunstância que evidencia manipulação e
abuso), há um agravante que combina a ganância e a ignorância.
Ganância por parte de ambos, abusado e abusador, pois o primeiro
acredita na loucura de poder manipular o poder da divindade em seu
benefício, como se fosse a divindade um gênio da lâmpada. O
segundo, por sua vez, aproveita a ocasião para se beneficiar
materialmente ou para se afirmar socialmente às custas da exploração
da loucura do primeiro.
Ignorância
também por parte de ambos, pois quando assim agem, demonstram
desconhecer o sentido da existência humana, o conceito de ética e
de moral; demonstram enfim, a condição desumana e desumanizadora de
suas existências.
Tornou-se
comum, pessoas sem formação adequada, ou seja, sem formação
profissional específica nas áreas ligadas ao estudo do
comportamento humano, se aventurarem a “dar conselhos” pela TV,
usando exemplos de problemas comuns da vida cotidiana para
apresentarem suas propostas de solução por atacado, como se isso
funcionasse da mesma forma para todos.
Não
bastasse a falta de preparo profissional desses “líderes virtuais”
de massas, alguns deles apelam para a fé religiosa de sua plateia,
criando situações de verdadeira manipulação e abuso espiritual,
nas quais as pessoas passam a acreditar na necessidade de seguir as
orientações doutrinárias impostas sutilmente em tais programas,
como forma de resolver seus problemas. E não unicamente os problemas
espirituais, mas, todo e qualquer tipo de problema, desde uma
enfermidade simples, ou problemas de relacionamento familiar, à
restauração do casamento. As questões financeiras também são
tema e costumam receber maior destaque, gerando frequentemente
notícias de golpes, extorsões, desvios, manipulação e abuso.
Da
mesma forma que pela TV, essas verdadeiras empresas, encabeçadas por
figuras carismáticas, de discurso eloquente e aparência próspera,
arrastam multidões para seus templos, onde as “ovelhas” são
submetidas a uma verdadeira “tosa” de seus bens materiais, além
de serem aprisionadas em jogos de manipulação psicológica.
Mas
não se pode perder de vista a realidade de que essas vítimas de
abuso não foram arrastadas violentamente, nem dopadas ou totalmente
enganadas. É fácil perceber que grande parte dessas pessoas busca
uma cura milagrosa instantânea, uma solução imediata para seus
problemas.
O
que move esta investigação, não é mais que tentar demonstrar o
quanto estão inculcados nas pessoas os valores da lei do mercado
consumista no qual vivemos, a ponto de ofuscar a muitos, impedindo-os
de discernir entre o que é regra do mercado capitalista e o que
deveria permanecer na esfera do sagrado, do transcendente. Pois se
tornou normal e aceitável as pessoas negociarem com a divindade, com
prazos, valores e condições bem estabelecidos.
A
semelhança com o mercado não para aí, pois, assim como temos que
adquirir um bem novo, às vezes antes de acabarmos de pagar o
anterior, também os pseudocristãos do Século XXI buscam nos
“shoppings da bênção” os produtos importados do mundo
espiritual. Buscam e encontram placebos produzidos da manipulação
da linguagem, em favor da manutenção da exploração da demanda por
curas urgentes para os mais diversos males.
Percebe-se
aí a aplicação de recursos de marketing, para a comercialização
do impalpável refrigério da alma angustiada dos consumidores, por
meio da etérea e não menos subjetiva ação do transcendente.
O
futuro dessa ilusão, conforme previu Freud em 1927, já pode ser
sentido. A sociedade tem se desmoronado em atos antes impensáveis de
violência e degradação. As decepções recrudescem os corações
de alguns e outros se tornam como os viciados em drogas, eternos
dependentes dos fornecedores de alívio temporário.
O
que temos então de prática do discurso teológico? Um discurso
carregado de artifícios voltados à manipulação da linguagem, na
busca de manter a opressão do indivíduo, a inibição do sujeito, o
que propicia sua manutenção na condição de objeto permanente da
exploração e do abuso de poder.
Há
que se construir alternativa contrária a essa manipulação, em
sentido oposto, empoderando o indivíduo, para possibilitar-lhe o
direcionamento à condição de sujeito autônomo e consciente, capaz
de protagonizar relações humanas mais equilibradas.