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Refugiados sírios X refugiados haitianos. Qual a diferença?

     Assim como em vários países do mundo inteiro, estão chegando nos últimos dias, refugiados sírios em nosso território. Muito se diz acerca dos motivos que os levam a abandonar suas origens. Guerra, regime opressor, perseguição religiosa... Seja o que for, algo os faz fugir. E felizmente o mundo os está recebendo. O Brasil também.
     Os haitianos também têm seus motivos para fugir e fogem. Às centenas, todos os dias, sírios e haitianos atravessam terras e águas em busca de uma nova oportunidade. O que eles buscam? O que eles encontram?
     E nós, que os recebemos? O que vemos nessas pessoas? Como as vemos? Como recebemos os sírios e os haitianos, dentre outros tantos fugitivos de outros tantos países mundo afora?
     Um brasileiro idiota sem noção e sem instrução, abarrotado de ignorância e arrogância, vazio de cultura e  sabedoria, humilhou publicamente um haitiano que trabalhava honestamente nas terras do sul, onde a predominância branca de linhagem europeia recebecom restrição os negros originários das Grandes Antilhas, assolados pela fúria da Natureza e abandonados pelo resto do mundo.
     Em São Paulo, haitianos foram vítimas de tiros de "chumbinho", sem saber quem os agride, nem a razão das agressões. 
     Na verdade todos sabemos o que ocorre. Trata-se de uma reação animalesca, instintiva, previsível, de parte de um grupo social que vê ameaçada sua condição de sobrevivência, diante da disposição demonstrada pelos indivíduos acrescentados ao habitat comum, de lutar por espaço. Os animais que já se encontravam confortavelmente alojados, reagem violentamente, buscando afastar o perigo da falta de alimento, de água, espaço, etc.
     Os sírios que estão chegando ao Brasil estão recebendo outro tipo de tratamento. Não parece haver inicialmente uma repulsa por eles. Até agora não se registrou manifestação desfavorável a sua vinda. Observemos que eles são de origem "europeia", espremidos que se encontram entre a África e a Europa. Espremidos também entre regimes políticos e religiosos complexos. Não a Natureza, mas a sede de dominação dela torna a vida difícil naquelas terras, gerando o desejo e a necessidade de buscar refúgio fora.
     Os sírios, aos olhos do preconceito brasileiro, são privilegiados pela pele clara e os traços "arábicos". Provavelmente enfrentarão menores resistências, salvo as de cunho religioso, já que em sua maioria, são adeptos do islamismo. Os haitianos, por sua vez, perdem também nesse último aspecto, pois são adeptos de um sincretismo "católico/vodú", que lhes acrescenta a pecha de seguidores de seita.
     Todos nós fugimos de algo, nos escondemos, buscamos outra possibilidade. Somos seres incomodados com nossa essência, perseguidos por nossa existência. Mas, que diferença há entre sírios e haitianos, que causa recepção tão diferente de uns e de outros pelo povo brasileiro?
     Quem entre nós e por que motivos, promove as diferentes reações em relação à recepção aos diferentes grupos sociais que aportam em nossas terras em busca de refúgio?

Ayslan Kurdi - hipocrisia sem limites

   
     Não resta dúvida. Chegamos sim ao extremo da falta de bom senso, da falta de sensibilidade em relação à dor do outro. A foto do menino Ayslan, morto entre tantos outros que permanecerão no anonimato, não passa de uma exploração desmedida, hipócrita e nojenta da desgraça alheia. Não a foto em si, mas o uso que se fez dela. Assim como se faz uso de qualquer situação dolorosa ou constrangedora, prazerosa ou mesmo neutra, pela qual alguém tenha passado, mas sem o consentimento da pessoa, que neste caso, jamais poderá se manifestar, autorizar ou negar.
     Pois vieram os abutres de todas as espécies e se arvoraram do direito de se manifestar em nome do menino morto.  Nem quando vivo aquele pobre menino poderia dizer algo, de modo que ninguém pode colocar palavras em sua boquinha, nem sentimentos em seus gestos, já que o que dele vimos, foi apenas o corpo empurrado pelo refluxo das ondas do mar, que por sua vez, nada diz de ninguém.
     Mas se atreveram a dizer tanta coisa, a supor tantos sonhos e achar tantos culpados, que se ele voltasse de Hades, olharia a cena e certamente se assustaria. Talvez ele dissesse que isso é um exagero, considerando que todos os dias e noites centenas de pessoas fazem aquela travessia. Diria ele que nos esquecemos dos tantos outros que morreram nas mesmas condições. Ele talvez até se sentisse incomodado por ter sido ultrajado em sua morte. Talvez reclamasse direitos sobre a exposição de seu pequeno corpo, que tanto lucro deve ter somado aos aparelhos de comunicação que o vilipendiaram.
     Mas isso não vem ao caso. Até porque ele nunca teve nem terá voz. Outros escolheram o que dizer em seu nome. Disseram o que ele queria, o que buscava, o que pretendia e desejava, sem jamais terem lhe consultado. Assim como outros escolhem todos os dias o que vão dizer em nosso nome e nós apenas nos calamos, como se nossas bocas estivessem cheias de água e areia. Hipócritas miseráveis, nós e eles.
     Nos calamos por comodismo, por covardia. Nos calamos por sermos tão parecidos com o outro e até agirmos como ele, oprimindo, calando e usando o corpo morto dos pequenos restos humanos que a maré da civilização nos exponha. Nos escondemos atrás do ato covarde de acusar o outro, apontar seus defeitos e expor suas fragilidades.
     Até quando será assim? Até quando nos calaremos, abaixaremos a cabeça e permitiremos que a civilização continue nos desumanizando?