Quando ou como tudo começou ninguém sabe exatamente, pois não
havia a escrita nem os meios de armazenamento de dados que temos
hoje. A história foi ganhando contornos fantasísticos, conforme o
interesse de cada povo que a contava. Não só os vencedores a
escreveram.
Reunimos alguns relatos que sobreviveram aos tempos, manchados é
claro, pelas muitas interpretações, pelos desvios, pelas cópias
adulteradas, enfim, pelo que há de real, ou seja, a intervenção
desmedida e o jogo de interesses na construção das verdades do
monopaternismo. Outros filhos tinham vários pais e não se
incomodavam com isso. Muitos pais e muitas mães, diferentemente dos
monopaternistas, que em momento algum se referem a ter uma mãe.
Estranho não?
Pois nos concentremos na história dos principais representantes
desse modo de pensar.
Eram três irmãos de idades muito diferentes. Judsem com mais de 60,
Cristem com pouco mais de 20 e Islem com 14... Séculos. Os três
totalmente certos de que eram filhos do mesmo pai, o qual nunca
viram, mas pelo que se sabe através das histórias repetidas pelos
antigos, sim, só podia se tratar do mesmo, o pai que os três
evocavam, mesmo que cada um atribuísse um nome diferente a essa
figura fantástica e tão diferente para cada um dos três, embora
tão igual a qualquer expectador livre de envolvimento em qualquer
das famílias, se é que exista algum.
Para comprovar a veracidade de suas reivindicações hereditárias,
cada um dos filhos se vangloriava de possuir um testamento produzido
pelo próprio pai e a eles entregue por um antigo morador de sua
terra natal. O problema é que cada um dos três testamentos havia
sido escrito em épocas e idiomas diferentes e muitas páginas, era
facilmente perceptível, haviam sido inseridas posteriormente, talvez
em substituição à original, danificada por alguma intempérie ou
acidente (não vamos nós, meros contadores da história, querer
imaginar que algo de suspeito haja aí).
Não se podia portanto, confiar plenamente no conteúdo dos
testamentos, por mais fidedignos que parecessem. Também não se pode
duvidar da boa vontade dos defensores de sua integridade. Afinal,
documento é documento. Não se deve brincar com essas coisas. Os
descendentes de Islem sempre levaram muito a sério este fato, ficando
mortalmente ofendidos se alguém desmerecesse ou zombasse de seu
documento. Os filhos de Cristem já não se apegavam tanto a esses
papeis, Falavam deles com muito respeito, mas na verdade, nunca os
leram completamente. Usavam-nos às vezes para se defenderem de seus
dois irmãos, que frequentemente os acusavam de não serem herdeiros
legítimos, mas, usurpadores disfarçados de vítima, por trás de
uma história sem muito sentido.
Judsem, velho e desgastado pelas muitas lutas na vida, também por
ter o hábito de se aliar a pessoas poderosas em busca de apoio na
incansável briga pela herança do suposto abastado pai, achava-se
agora em descrédito e rodeado de inimigos, principalmente uns
vizinhos briguentos, que o acusam de haver invadido suas terras,
onde já viviam há muito tempo. Islem tem muitos primos entre esses
vizinhos, de modo que sua relação com Judsem é bastante
conturbada. Seus filhos sempre se desentendem e partem para a
agressão mútua, matando-se uns aos outros e enfraquecendo ambas as
famílias.
Cristem não entra nesse clima de agressões físicas dos irmãos,
mas tem muitos filhos em várias partes. Esses filhos andarilhos
adotaram costumes muito diferentes, ao ponto de não se poder mesmo,
pelos seus hábitos, dizer que são de uma mesma família. Na verdade
são três os filhos de Cristem, que formaram três grandes grupos em
torno de si. Catolex é o mais velho. Tem muitos filhos e filhas e é
muito rico. Enriqueceu-se às custas do ouro doado pelos criminosos
em troca do direito a um lugar na cidade que está sendo construída
para abrigar criminosos arrependidos e que tenham algum ouro para
pagar a passagem. Infelizmente não é dado ao diálogo e monopolizou
por muito tempo o conhecimento da verdade, chegando a matar quem
ousasse discutir assuntos dessa natureza.
Isso abriu espaço para o segundo irmão, Protevan, que aproveitou a
caduquice do irmão mais velho e se estabeleceu como representante e
portador da palavra do pai. Sua família também cresceu
assombrosamente e de forma pouco cautelosa, já que foram eliminados
todos os entraves que antes havia para a entrada na família. Então,
gente de toda espécie começou a se agregar ao povo de Protevan, de
modo que em pouco tempo já não guardavam qualquer semelhança com
seus predecessores. Assim como os Catolex do passado, começaram a
construir várias cidades para abrigar criminosos e ultimamente estão
investindo em planos de saúde para manter em constante tratamento as
vítimas de dores em geral, mas principalmente as que não conseguem
abrir os olhos.
Muitos deles costumam dizer que só eles e mais ninguém no mundo são
os legítimos herdeiros do legado de Cristem, hostilizando
frequentemente o irmão mais velho e humilhando com apelidos os
filhos do irmão menor, Espirek.
Esses últimos, pura bondade, jamais fazem ou se metem em escândalos,
como os complicados filhos de Catolex e Protevan. Pelo contrário,
são discretos, embora ultimamente, suas ideias difíceis de
entender, estejam sendo bastante divulgadas, já que eles são bons
em escrever livros e até filme já fizeram. Vale lembrar que há
entre eles uns descendentes da outra banda do mundo, misturados com
uns índios e vaqueiros, originários de nossas terras do sul,
formando uma casta com princípios comuns aos Espirek, mas que falam
um dialeto diferente, muito engraçado, por sinal. Esses gostam de
música e dança. São na maioria humildes e desprendidos. Seus
costumes são passados de pai para filho e pouco há escrito sobre
eles.
Os filhos de Catolex fizeram muitas cópias do testamento de Cristem,
mas, com o passar do tempo e com a preguiça do povo, poucos liam os
papeis. Antes, inventaram muitas histórias baseadas nas partes mais
importantes do testamento, para inculcar nos seus jovens não mais
que a essência da bela história de Cristem. De resto era só lendas
e superstições.
Os descendentes de Protevan foram mais ousados. Arrancaram muitas
páginas do velho manuscrito de seu ancestral Cristem, deixando
apenas as partes que lhes interessavam e passaram a espalhar a falsa
notícia de que os filhos de Catolex haviam acrescentado páginas ao
texto original. Para complicar mais ainda a situação, os filhos de
Espirek, bons de escrita, buscaram inspiração e produziram uma
terceira versão para o já sem crédito testamento de Cristem.
Veio gente de todos os lados palpitar sobre qual seria a boa e
perfeita vontade do verdadeiro autor do verdadeiro testamento. Um tal
Smooth, lá das terras do norte, alega ter desenterrado umas placas de ouro contendo o outro testamento de Cristem, bastante diferente dos
anteriores. Muita gente anda lendo o que o Sr. Smooth alega ter
descoberto, mas é apenas mais uma variação que não muda em
essência o que poderia realmente ser o legado de Cristem. Esses são conhecidos como os Nomroms, por que um anjo de nome parecido teria guiado Smooth a encontrar as tais placas.
Em resumo e para encerrar este primeiro capítulo dessa história
fantástica, concluímos acrescentando que, mesmo diante de tamanha
divergência entre as tantas alegações dos querelantes pela
legitimidade de seus testamentos, acreditamos que os jurados e
juízes, mesmo cegos e surdos que são, serão capazes de encontrar em
seus corações a justa e perfeita sentença.
continua...