Cazuza cantou que seus heróis morreram de overdose. Ali, o garoto que não conheceu as regras e morreu precocemente por causa disso, deixava uma verdade no ar, mesmo sem necessariamente saber o que dizia. Dai podermos afirmar que, ou não temos heróis na essência da palavra, ou perdemos a exata noção do conceito de herói. Digo bobagem?
Macunaíma é o protótipo
do herói brasileiro. Malandro, hedonista, safado, preguiçoso e esperto. Adepto e praticante da "lei de Gerson", pronto a levar
vantagem sobre a própria sombra. Há quase cem anos Mário de
Andrade já sabia disso, ao criar o personagem. E se algo mudou em todo esse tempo, mudou
para pior.
Nossos heróis são
trambiqueiros, gambiarreiros, catireiros, mas não admitimos que os outros errem conosco. Não suportamos a falta de ética do governo e
das autoridades, como se eles fossem uma classe diferente de gente,
distante de nós e obrigados a nunca falhar. Elegemos gente de
passado sombrio e esperamos futuro brilhante. Elegemos palhaços e queremos seriedade.
Mas a culpa não é
nossa. Somos vítimas dos heróis de ontem, que não nos ensinaram a
nos defender deles mesmos e de seus sucessores. Desde a antiguidade, como em Homero na Odisséia, Ulisses, o protótipo do herói moderno, navega anos seguidos em uma luta sem fim, contra monstros e poderes diversos, sem qualquer benefício a quem quer que fosse, enquanto sua família sofre as maiores humilhações e privações. O herói protege seus amigos aventureiros, mas abandona à sorte sua casa, mulher e seu filho.
Assim, cada um que se
ergue em defesa de algum interesse que agrade a mais de cem pessoas,
já está apto a se candidatar ao cargo de herói do Brasil. E não
importa mesmo o que ele já tenha feito, o que esteja propondo ou o
que vá realizar.
Nossa carência de heróis é tão grande, que tomamos por defensor qualquer imbecil que saiba cantar, jogar futebol, ou se saia bem no púlpito de uma igreja. Sua
ficha, sua formação e seu conhecimento é o menos importante. Basta
que brilhe onde está, que o colocamos onde não deve. E depois,
fazemos piada, lastimamos e culpamos alguém pela má escolha, menos
a nós mesmos.
O que nos absolve de
receber sozinhos o título de idiotas é o fato de que em todos os
tempos, todos os povos construíram heróis e sempre buscaram enaltecer
características que, se levadas a uma analise crítica sem
restrições, vai nos mostrar que boa parte dos mitos, se não todos,
enaltece homens de caráter moralmente reprovável.
Os heróis da Bíblia, por
exemplo, em sua maioria, são homens de procedimento inadequado e de
uma ética duvidosa, de práticas moralmente condenáveis, como
Abraão, chamado o pai da fé, mas que duvidou da providência divina
e depois abandonou o filho e a concubina à sorte no deserto; Jacó,
mentiroso e enganador, usurpador do direito do irmão, herda a
astúcia de seu pai Isaac e seu tio Labão, família de
trambiqueiros; Moisés, assassino violento e descontrolado, a ponto
de não poder ver a “terra prometida”, pela qual lutou a vida
inteira; Davi, sanguinário indigno de erguer templo ao Santo dos
Santos, manda para a morte seu mais fiel servo, para lhe tomar a
mulher; Sansão, homicida contumaz, que desobedece aos pais, trai seu
juramento e leva toda sua tribo à desgraça por, de forma infantil,
confiar e se entregar a uma mulher inimiga.
Mas esses mesmos mortais
cheios de falhas mais que evidentes nos foram dados como modelos de heróis e aprendemos a relevar seus deslizes. Assim, nos perdoamos
pelo mal que faremos, como apregoa Paulo de Tarso, o grande
disseminador do cristianismo ao mundo: O mal que não desejo faço-o
sempre. Já o bem que desejo, quase nunca o faço.
Então fica a dúvida:
Precisamos mesmo de heróis, ou devíamos, cada um e todos nós, sabedores que nossa natureza de indivíduo tende ao socialmente indesejável, exercitando a vigilância sobre nossos instintos (pulsões, se soar melhor), produzirmos por nós e em nós
uma sociedade mais equilibrada? Já que optamos pela civilização, não deveríamos ser todos, heróis de
batalhas diárias contra nossos desejos individuais em favor do bem
coletivo?